A sopa de hoje tinha o mesmo gosto que a de ontem. Já faz doze anos que é assim, e até minha morte assim será. Perdido entre as trevas de minha cela abafada, eu caminho para tentar distrair minha cabeça transbordando de remorso e culpa. E, quando eu olho para meu sol imaginário, eu vejo que o dia aqui sempre será escuro e esquisito. Sou um prisioneiro, sim. Sou um pecador, sim. Mas eu não sou um mentiroso. Jamais menti em minha vida, e jamais mentirei. Nem mesmo mentirei aqui, nesse meu relato escrito na parede de minha cela com minhas poucas unhas que restam. Não, não mentirei. Contarei detalhadamente o que me trouxe e porque eu, com toda a certeza do mundo, mereço o castigo que agora sofro.

Eu tinha apenas nove anos de idade quando conheci Jéssica. Ela era pequenina, agradável e educada. Gostava de ir ao parque de manhã, passear com seu cachorrinho e tomar sorvete de morango. E eu a seguia sempre que podia. Às vezes era dificílimo, uma vez que ela dirigia aquele carro vermelhinho e desbotado com vigor e prontidão. Ela devia ter uns vinte anos na época, vinte e cinco, não sei até hoje. O que sei é que minha vontade de conhecê-la aumentava com o passar dos anos. Quando enfim estava com vinte anos, já tinha mudado de cidade com meu pai, que por trabalhar de pintor viajava o máximo que podia. Ele não era um bom pintor, se quer saber. Bom não no sentido de pintar bem, isso ele sabia fazer. Bom como pessoa ele não era. Deu calote em diversos amigos e parentes, e tínhamos que fugir sempre para não sermos encontrados. Ouvi uma vez ele no telefone e me pareceu que ele devia para mais de dez agiotas. De qualquer forma, isso não é o foco da narrativa. Só mais um detalhe: minha mãe morreu no parto, nunca a conheci e nunca a quis conhecer. 

O fato é que finalmente decidi buscar a minha paixão da infância, minha musa, minha Beatrice, minha Jéssica. Não lhe sabia o sobrenome, de forma que foi quase impossível achá-la. A sorte é que eu sabia que ela era uma moça de hábitos. Logo, eu devia apenas ir ao parque que ela frequentava e esperá-la lá. E foi o que eu fiz. Esperei alguns dias e enfim ela apareceu. Lembrava ainda o nome do lugar: Recanto e Encanto. Um nome brega, posto talvez pelo proprietário que viera a falecer decorrente de um infarto. Mas qual não foi meu susto ao vê-la entrando no parque. Bela? Sim, como sempre. Graciosa? Claro, por que não? Casada e com um menino e uma menina? Sim, para meu susto. O fato me deixou extremamente frustrado e decepcionado. Ela passou por mim sem qualquer cerimônia, e se foi desse jeito. Nem mais havia cachorro junto, ele devia ter morrido ao longo desses dez anos. 

Entrei em meu carro e passei a refletir. O que fazer agora? Não tinha onde ficar, onde dormir e o que comer. Decidi seguir Jéssica e sua família perfeita. Eles andaram bastante até chegarem em uma casa simples, mas bem conservada e enfeitada. Entraram e sumiram de minha vista. O que fazer, o que fazer, pensei, não posso simplesmente esperar. Eu tinha que fazer algo. E seria naquela noite. Esperei anoitecer. Quando a lua já estava alta no céu, e as estrelas iluminando a rua deserta, saí do carro, entrei no gramado da casa e consegui chegar aos fundos. Estranhei o fato da casa ainda estar com a luz da cozinha acesa, embora fosse já de madrugada. Resolvi espiar pela janela. Não vi coisa alguma, pois uma cortina preta e grossa tampava minha visão. Desiludido, decidi abandonar qualquer ideia possível e ir deixando minha esperança cair no chão conforme eu andasse. Já no meio do caminho, escutei um barulho dentro da casa. Mas não era um barulho qualquer. Não eram passos, risadas ou bocejos. Era um gemido, fraco e bestial. Um gemido de dor. Parecia que algo ou alguém sofria calado. Estranhei muito, mas resolvi ir embora mesmo assim. Dei um passo e de repente o gemido passou de baixo e inconstante para frenético e cada vez mais alto. Senti que tinha que fazer algo. E fiz. Corri para a porta do jardim. Trancada. Resolvi ganhar impulso e arrebentá-la, pois o gemido estava me deixando louco. Corri e escancarei a porta com facilidade. Dentro da casa nada havia a não ser coisas óbvias: cama, sofá, fogão, televisão. Uma casa ordinária de comum. Não havia nenhum sótão. Deve haver um porão, pensei. O gemido a essa hora era ensurdecedor. Algo sofria muito. Temi que alguém estava machucando minha doce e bela Jéssica, junto de sua família. Alguém havia chegado antes de mim. Mas que coincidência, pensei, justo na noite que resolvi vir aqui? Procurei por um porão, e o achei facilmente. Estava em um quarto desocupado da casa. E estava com a porta aberta. De dentro, uma luz vermelha irradiava com muita força, me cegando quando tentei entrar nele. Depois de alguns minutos, meus olhos se acostumaram parcialmente ao brilho rubi e eu consegui descer as escadas. Meu maior remorso! Minha maior culpa! O que vi não era para ser visto por ninguém. Em minha frente, estava Jéssica e seu marido, em frente de uma bancada de cirurgia metálica. Sobre ela, um cachorro estava entreaberto, com as tripas para fora, agonizando de dor mas vivo. Sim, vivo! Eles arrancavam algumas partes dele e entregavam para as crianças, que estavam sentadas numa mesinha de criança, devorando as tripas, um dos olhos dele e a cauda. Chorei por minha vida. O cheiro de morte e sangue era insuportável. E para meu espanto, havia diversas pilhas de ossos humanos e animais espalhados pelo chão. Jéssica me notou, e com um sorriso delicado disse, em meio aos urros do cachorro, Então você veio se juntar a nós. Desmaiei. Quando acordei, estava nessa cela sem luz e sem calor. Todo dia escuto gritos de dor, sejam humanos ou animais. E nada posso fazer, pois eles comeram minha língua. Não consigo mais falar. Mas consigo escrever. Quem conseguir achar essa mensagem, por favor, saiba que um dia Jéssica e seu marido e suas crianças estarão no fundo do inferno, queimando e chorando mais que todos.

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  • Certo, Mateus, me conte daquele caso que você sempre evita falar. 
  • Felipe, esse não é dos casos mais normais. 
  • Mas eu quero muito saber. A mídia falou pouco do caso. Deram informações confusas demais. 
  • Nós evitamos falar desse caso na época, pois ele é muito aterrador.
  • Mas o suspeito era realmente o culpado?
  • Não só culpado como é louco.
  • O que quer dizer com isso?
  • O sujeito chama-se Pedro Figueira. Aos dez anos foi diagnosticado com esquizofrenia gravíssima. Sua mãe morreu espancada pelo pai alcoólatra e traficante. Talvez esse seja o episódio que tenha criado o trauma em Pedro, pois foi ele que avisou a polícia sobre a morte. Inclusive, foi ele que achou o corpo ainda vivo. Depois disso, o pai foi preso e ele morou em diversos orfanatos. Até conhecer Jéssica.
  • E quem é Jéssica?
  • Ele mesmo.
  • Como?
  • Foi nessa ocasião que Jéssica nasceu. Ela é a outra pessoa para ele. E digamos que ele se apaixonou por ela.
  • Mas isso é possível?
  • Não sei dizer, mas que aconteceu, aconteceu. Há testemunhas que viram o garoto no orfanato se beijando no espelho falando o nome Jéssica. Relatos que ele disse que perdeu a virgindade com ela, e por aí vai.
  • E o que o levou a matar?
  • Jéssica. Ela ficou com ciúmes quando Pedro foi adotado por uma família, que já tinha dois filhos, um menino e uma menina. A Nova Mãe, que era assim que Pedro disse que chamava a senhora que o acolheu, cujo nome verdadeiro é Rosa Oliveira, deu de presente de boas vindas um cachorrinho para ele. Dois dias depois, eles acharam o cachorro mutilado no jardim. Mandaram Pedro para uma clínica, onde ficou dos dez aos vinte anos. Voltou transformado, como ele próprio me disse. A família parecia se importar com ele, e ficaram feliz com seu retorno. Foram encontradas diversas fotos tiradas por todo o mundo com ele junto da família nova. Um dia, porém, tudo mudou.
  • Foi aí que você entrou?
  • Sim. Eu trabalhava na rua ainda. Foi de noite que eu e meu parceiro recebemos um chamado. Vizinhos reclamavam de um barulho altíssimo vindo da casa da Sra. Oliveira. E de fato, podíamos ouvir o barulho de uma distância de um quilômetro. Tocamos a campainha. Nada. Entramos a força. A casa estava normal, e o barulho vinha de baixo. Possivelmente do porão, pensamos. Quando entramos…
  • O que viram?
  • Pedro havia esfaqueado toda a família. Havia sangue por todo o lado. Era até difícil enxergar a cena, de tanto sangue que tinha. Doía o olho. Encontramos Pedro chorando desesperadamente. Ele não parava de nos dizer que foi Jéssica que havia feito aquilo. Junto dele havia uma carta, toda rabiscada, contando uma falsa história criada pela própria Jéssica para ele poder nos enganar. Aqui está a carta.
  • Surreal. Que horror! E pensar que vocês revelaram isso pro jornal na época. Lembro de ter lido e ficado confuso. Agora entendo tudo.
  • E o pior ainda é o que está escrito no verso da carta. Vire e leia.
  • “Pedro, nossa filha está para nascer. Não se esqueça disso. Ela se chamará Rosa. Linda homenagem, não? Exatamente como você fez comigo, se lembra? Eu era uma jovem garotinha com dez anos quando você me conheceu. Para você, eu era uma espécie de sol. Contudo, quando nos conhecemos, eu passei a ser o seu sol imaginário…”